Historicidades - curso de extensão

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Raquel Taraborelli

Raquel Taraborelli

Instituto Packter


                               

             O Homem chega em casa, abre a porta e é recebido pela mulher e os filhos, alegremente. Distribui beijos entre todos, pergunta o que há para jantar e dirige-se para o seu quarto. Vai tomar banho, trocar de roupa e preparar-se para algumas horas de sossego na frente da televisão antes de dormir. Quando está abrindo a porta do seu quarto ouve uma voz que grita: - Corta! O homem olha em volta, atônito. Descobre que sua casa não é sua casa, é um cenário. Vem alguém e tira o jornal e a pasta das suas mãos. Uma mulher vem ver se a sua maquiagem está bem e põe um pouco de pó em seu nariz. Aproxima-se um homem com um script na mão dizendo que ele errou uma das falas na hora de beijar as crianças. - O que é isso? – pergunta o homem. – Quem são vocês? O que estão fazendo dentro da minha casa? Que luzes são essas? O que, enlouqueceu? – pergunta o diretor. – Vamos ter que repetir a cena. Eu sei que você está cansado, mas... Estou cansado, sim senhor. Quero tomar meu banho e botar meu pijama. Saiam da minha casa. Não sei quem são vocês, mas saiam todos! Saiam! O diretor fica de boca aberta. Toda a equipe fica em silêncio, olhando para o ator. Finalmente o diretor levanta a mão e diz: - Tudo bem, pessoal. Deve ser estafa. Vamos parar um pouquinho e ... - Estava coisa nenhuma! Estou na minha casa, com a minha... A minha família! O que vocês fizeram com ela? Minha mulher! Os meus filhos! O homem sai correndo entre os fios e os refletores, à procura da família. O diretor e um assistente tentam segurá-lo. E, então, ouve-se uma voz que grita: - Corta! Aproxima-se outro homem com um script na mão. O homem descobre que o cenário, na verdade, é um cenário. O homem com um script na mão diz: - Está bom, mas acho que você precisa ser mais convincente. - Que- quem é você? - Como, quem sou eu? Eu sou o diretor. Vamos refazer esta cena. Você tem que transmitir melhor o desespero do personagem. Ele chega em casa e descobre que sua casa não é uma casa, é um cenário. Descobre que está no meio de um filme. Não entende nada. - Não entendo... - Fica desconcertado. Não sabe se enlouqueceu ou não. - Eu devo estar louco. Isto não pode estar acontecendo. Onde está minha mulher? Os meus filhos? A minha casa? - Assim está melhor. Mas espere até começarmos a rodar. Volte para sua marca. Atenção, lues... - Mas que marca? Eu não sou personagem nenhum. Eu sou eu! Ninguém me dirige. Eu estou na minha própria casa, dizendo as minhas próprias falas... - Boa, boa. Você está fugindo um pouco do script, mas está bom. - Que script? Não tem script nenhum. Eu digo o que quiser. Isto não é filme. E mais, se é um filme, é uma porcaria de filme. Isto é simbolismo ultrapassado. Essa de que o mundo é um palco, que tudo foi predeterminado, que não somos mais do que atores... Porcaria! - Boa, boa. Está convincente. Mas espere começar a filmar. Atenção... O homem agarra o diretor pela frente da camisa. - Você não vai filmar nada! Está ouvindo? Nada! Saia da minha casa. O diretor tenta livrar-se. Os dois rolam pelo chão. Nisto ouve-se uma voz que grita: - Corta!

Luis Fernando Veríssimo.

Comédias da vida privada: crônicas escolhidas. 19. Ed. Porto Alegre: L&PM, 1996. P. 194-95

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