Discutindo Filosofia

                                                 edição de novembro de 2006

 

A Filosofia Clínica é uma disciplina nova e controversa que nasceu no Brasil e hoje apresenta profissionais formados em todo o país. A novidade está na soma de estudo do pensamento e técnicas terapêuticas. A controvérsia reside no fato de que este tipo de atividade não possui metas curativas – e sua eficácia ainda se encontra em fase experimental. Para discutir o tema Discutindo Filosofia entrevista Mônica Aiub, uma das principais filósofas clínicas do país. Além de professora universitária, Mônica Aiub é sócia-fundadora da Associação Paulista de Filosofia Clínica e autora de diversos livros sobre o assunto.


 

 

- O que é Filosofia Clínica?

Aiub – É uma terapêutica, um modo de promover análise sobre problemas ou questões que afligem as pessoas. É mais uma provocação que uma cura, pois para obter uma cura é preciso ter uma doença, e a gente não trabalha com este conceito. Um dos fundamentos da Filosofia Clínica é o respeito à singularidade, ou seja, enxergar o outro como um ser legítimo. Não partimos de um filósofo ou de uma teoria, nem pretendemos dar uma resposta. Fazemos uma leitura do que está acontecendo com cada pessoa.

 

- Pode-se dizer que a Filosofia Clínica não é uma doutrina?

Aiub – Sim. Inclusive existem várias pesquisas no sentido de indicar que, se houvesse um fechamento, a produção de um sistema ou modelo de análise, estaríamos caindo naquele problema de pretender dar respostas. Se eu tenho um sistema que dá respostas, então eu não tenho Filosofia, e com isso se abandona a postura filosófica, que é propriamente reflexiva.

 

- Como se dá a terapia?

Aiub – A terapia sempre começa pela história de cada pessoa. Primeiro tratamos do assunto que nos é apresentado, só que geralmente este não tem nada a ver com a questão que verdadeiramente mobiliza a pessoa. Tem casos em que o partilhante não consegue nem mesmo organizar as idéias. Mas é preciso partir disso para poder trabalhar e organizar as idéias. Numa segunda etapa, a gente pede para o partilhante contar sua história, desde as primeiras lembranças até hoje. Nesse momento, a gente somente vai ouvir, e se a pessoa se perder, a trazemos de volta ao tema, e acompanhamos toda a sua trajetória.

 

- O que vocês pretendem com a construção desta narrativa?

Aiub – Queremos observar o processo como a pessoa construiu as questões, como ela chegou a esta situação e que está, o que é significativo, o que não é. Então, enquanto ela vai contando a história nós observamos o entorno. Depois de terminada a narração nós retornamos ao início, dividimos em partes e pedimos para recontá-la.

 

- Por quê?

Aiub – Às vezes a gente pega uma linha para contar a história e a segue. Mas ficam muitas coisas paralelas de que não temos oportunidade de falar naquele momento. Por isso, dividimos a história em tantas partes quantas forem necessárias, até que possamos montar um quadro, e o partilhante possa trazer novos dados.  Terminada esta fase, a gente já tem um quadro mais ou menos montado das questões. Então, pegamos a história ponto a ponto e pedimos para a pessoa falar sobre as partes contraditórias. Esclarecidas as dúvidas, fazemos um planejamento clínico. A esta altura já sabemos qual é a questão de fato e a maneira como ela se formou. Levamos o partilhante à discussão sobre o que está acontecendo com ele para provocá-lo a pensar. E é nesse processo, chamado de submodo, que observamos como a pessoa lida com suas questões e tentamos questionar o resultado da relação dessa pessoa com seus problemas e que outras alternativas ela teria para lidar com isso.

 

- Como está organizada a terapia?

Aiub – A terapia está organizada em três eixos: os exames categoriais, ou seja, o que está em volta, universo no qual a pessoa está inserida; a estrutura do pensamento, que é o modo como ela se constitui a partir de suas vivências; e os submodos, que são as maneiras como a pessoa lida com suas questões, como as resolve.

 

- Como surgiu a Filosofia Clínica?

Aiub – O médico psiquiatra Lúcio Packter fez na Holanda uma pós-graduação em urologia. Lá descobriu um grupo de filósofos que fazia trabalho de aconselhamento. Lúcio começou a ver como isso funcionava em seu ambiente de trabalho. Passou a entrevistar as pessoas, mas percebeu que direcionava as resposta por meio das suas perguntas. Por isso ele foi estudar os filósofos que trabalham com a questão da historicidade, da hermenêutica, para ver como poderia não direcionar as perguntas. Dando prosseguimento a esta pesquisa cursou faculdade de Filosofia e em 1994 montou o Instituto Packter, com sede em Porto Alegre, que formou o primeiro grupo de filósofos clínicos.

 

                                              

 

- E como você ingressou na Filosofia Clínica?

Aiub – O meu encontro com a Filosofia ocorreu através da música, que estudei desde muito cedo, mas por questões circunstanciais não foi possível trabalhar com música. Minha segunda opção era Filosofia. Entrei na Unisantos e logo me apaixonei por ela. Terminei a faculdade, dei aula de Filosofia por 15 anos na cidade de São Vicente, em São Paulo. No meio disso, apareceu a Filosofia Clínica como possibilidade de terapia. O conceito que eu tinha de terapia era vinculado à cura, e eu não conseguia entender como a Filosofia, que não trabalha co as idéias prontas, com teorias prévias, poderia ser ao mesmo tempo Filosofia e terapia. Então, com uma grande curiosidade procurei saber do que se tratava. Assim fiz um curso em que o professor Lúcio Packter dava aulas mensais. Logo nas primeiras aulas vi que o conceito de terapia era outro; não era uma terapia que se utilizava de uma teoria para encaminhar a pessoa, para que ela recobrasse significados e se reconstruísse. A idéia era a Filosofia como uma construção de conceitos, e não de um sistema filosófico; uma Filosofia que tem por objetivo a autonomia do pensamento.

 

- Como se dá a formação do filósofo clínico?

Aiub – É preciso ter graduação em Filosofia e fazer um curso, oferecido pela Associação de Filosofia Clínica. Há a parte teórica, a clínica didática e o estágio supervisionado. A formação está dividida em duas etapas: curso básico e avançado. O curso básico é mais informativo, voltado para pessoas graduadas em qualquer área. Com duração de um ano e meio (360 horas), consiste numa especialização lato sensu – não habilita à clínica. Nele fazemos uma introdução à Filosofia Clínica, a questão da historicidade, um pouco de hermenêutica, algumas questões de Antropologia, da Ética e o estudo dos dois primeiros eixos: exames categoriais e estrutura do pensamento.

 

- E o curso avançado?

Aiub – Este habilita à clínica, mas para cursá-lo é preciso ter formação em Filosofia, ter completado o curso básico e ter feito a clínica didática. Para trabalhar como filósofo clínico é preciso ainda fazer parte da Associação, que se responsabiliza pelo trabalho dos filósofos clínicos e o fiscaliza.  Ainda não há uma associação nacional, mas este projeto está sendo discutido. Temos um código de ética, o estatuto do filósofo clínico, preparados pelo Instituto Packter. Os cursos têm parecer do MEC e são oferecidos em parcerias com faculdades e universidades; a profissão, no entanto, ainda não é regulamentada.

 

(em dezembro publicaremos o restante da entrevista)