Presente de grego

Brasileiros exportam sua Filosofia Clínica,
corrente polêmica a discutir questões
existenciais e pôr fim às angústias do homem,
tal como o fazia Platão

por Jussara Goyano

No Brasil, parece que a onda Mais Platão, menos Prozac não interessou apenas ao escritor Paulo Coelho, que fez a apresentação de livro homônimo do professor canadense Lou Marinoff. À revelia dos que atacam Marinoff, alguns brasileiros praticam e exportam, em forma de conhecimento científico, algo semelhante ao polêmico Aconselhamento Filosófico alardeado no referido best-seller (um sucesso de vendas em 20 países).  Em 2006, o psicanalista e filósofo Lúcio Packter, do Rio Grande do Sul, prevê a abertura de diversos centros de estudos da brasileiríssima Filosofia Clínica pela Europa. Trata-se de uma corrente criada pelo próprio gaúcho em fins da década de 80, que, aos poucos, toma conta das Universidades nacionais. É o avanço do País em questões controversas dos novos rumos de uma ciência tão antiga quanto pouco explorada nos tempos modernos.


Enquanto o Aconselhamento (ou Filosofia Prática) de Marinoff pretende descobrir e tratar as angústias humanas, por meio de questionamentos filosóficos que suscitam reflexões dos clientes, a Filosofia Clínica usa o termo “partilhantes” para denominar os que passam pelos especialistas dessa área e abordagens diferentes para atuar no mesmo campo dos “práticos” ou “conselheiros”. Packter ensina, em cursos de pós-graduação, que a Filosofia Clínica consiste em direcionar e elaborar, a partir da metodologia filosófica, procedimentos de diagnose e tratamento endereçados a questões existenciais encontradas em hospitais, clínicas, escolas e ambulatórios. Técnicas que diferem dos métodos e fundamentos da Psicologia, da Psiquiatria e da Psicanálise: não existe o conceito de normalidade, de patologia; não existem concepções a priori como ‘o homem é um ser social’, ‘o homem busca a felicidade’. Tudo parte da historicidade da pessoa atendida, percorrendo-se desde o logicismo formal até a epistemologia nas questões focadas no diagnóstico dos problemas. A fundamentação das questões consta da Filosofia acadêmica, inteiramente, com seus escritos e autores. Está baseada no Logicismo, na Epistemologia, na Fenomenologia, na Historicidade, no  Estruturalismo e na Analítica da Linguagem, entre outras abordagens.

 

Maré contrária


Apesar do profundo embasamento teórico da prática e das referências aos filósofos da academia em sua finalidade (consulte, a respeito, o quadro Origem antiga), psiquiatras consideram a Filosofia Clínica algo perigoso. Isso pelo fato de que filósofos não têm a formação que lhes permite identificar causas orgânicas das angústias tratadas – uma disfunção da hipófise, uma deficiência mineral ou outros problemas ligados à origem de síndromes e depressões, por exemplo. Já os Psicólogos insistem em dizer que um aconselhamento intelectual desconsidera o chamado “domínio afetivo", tomando como manifestações racionais a desordem das emoções. Isso tudo é algo que Packter considera dizendo que, na verdade, quem mais procura cursos de Filosofia Clínica hoje são médicos e psicólogos (quando não pessoas graduadas em ambas as áreas). Assim, sua corrente é maciçamente praticada por gente habilitada em fazer diagnósticos interdisciplinares, considerando diversos aspectos da mente humana, fazendo os encaminhamentos médicos necessários.  “A primeira pergunta que costumavam fazer em minhas palestras nas Universidades (e ainda faço uma média de três a quatro, mensalmente) era exatamente o que é a Filosofia Clínica. Antes, a pergunta era feita por filósofos; hoje, são médicos e psicólogos que têm maior curiosidade”, conta o gaúcho.

Não são os psiquiatras e os psicólogos, porém, os únicos que questionam a eficácia e os métodos da Filosofia Clínica.  Um dos primeiros filósofos a “clinicar”, oferecendo tratamento individual de questões existenciais, foi Gerd Achenbach, na Alemanha, por volta de 1981.  É um crítico, porém, de Marinoff e seus seguidores. Num programa estadual de prevenção de suicídios, atuou como conselheiro de potenciais suicidas, incitando a discussão filosófica dos motivos que levariam essas pessoas a acabarem com a própria vida. Mas não chegou a elaborar métodos para executar esse ou outros trabalhos parecidos. A discordância da metodologia elaborada para o Aconselhamento conduz ataques aos filósofos práticos de hoje, que conseqüentemente se estendem a filósofos clínicos. “Mas o maior desafio atualmente enfrentado pela Filosofia Clínica diz respeito aos custos e ao modo de tornar viáveis as pesquisas para o desenvolvimento e a consolidação dos trabalhos”, acredita Packter.
 

Em contraponto, tem-se a já mencionada abertura de centros internacionais, prevista para o ano que vem, e o cálculo de Packter de que a cada 20 dias abre uma entidade ligada à Filosofia Clínica, todas com alguma produção científica. “Associações estaduais de Filosofia Clínica existem de Manaus a Porto Alegre. Além disso, há as comissões e conselhos de ética espalhados pelo País”, avalia o psicanalista e filósofo. Já são mais de 4 mil especialistas em Filosofia Clínica. “Entre estes há nomes de destaque como Hélio Strassburger e Mariza Niederauer, ambos de Porto Alegre; Alex Lamonatto, de Vitória (ES); Mônica Aiub, de São Paulo (SP); Margarida Nichele Paulo, de Curitiba (PR); Olga Hack, de Brasília (DF); Maria dos Santos Lopes, de São Luís do Maranhão (MA), e outros colegas importantes na parte prática. Há, também, colegas de renomada produção teórica, como Mariluze Ferreira e José Maurício de Carvalho, ambos de Minas Gerais (MG); Gláucia Tittanegro, de São Paulo. A lista é grande e pelo menos outros vinte nomes podem se unir a esses”, lembra Packter.


Propedêutica

 

O modelo de um consultório clínico dirigido por um filósofo aguça a curiosidade das pessoas que entram em contato com a Filosofia Clínica. “Apenas pelo conforto, um sofá ou divã são admitidos. O filósofo clínico também pode trabalhar caminhando em parques, em bibliotecas e cafés. Seu campo de atuação ultrapassou as paredes dos consultórios”, explica Packter. Em jardins ou divãs, a ordem é não influenciar as respostas do partilhante a respeito de sua historicidade e sobre a construção do pensamento que tem das questões conflitantes de sua vida. É dessa forma, por exemplo, que o especialista Mário Alves trabalha no setor de oncologia do Hospital das Clínicas de Uberlândia (MG), acompanhando o dia-a-dia de pessoas que lidam com a dor. Ele está presente nos últimos momentos de muitos desenganados, ajudando alguns deles a lidar com a morte iminente e viver com menos conflitos, aproveitando melhor o tempo que lhes resta. Há também casos em que a Filosofia Clínica é utilizada para fazer com que o paciente da oncologia aceite espontaneamente a morte.

 

A Filosofia Clínica também é usada com sucesso em escolas, como mostra o trabalho desenvolvido em educação por Mônica Aiub, presidente da Associação Paulista de Filosofia Clínica. Mônica orienta professores, alunos e pais em questões que podem ser trabalhadas do ponto de vista filosófico, dentro e fora da sala de aula. Em atividades ligadas ao corpo, destaca-se o trabalho desenvolvido por Márcio Lunardelli, em Florianópolis, que é pioneiro nessa aplicação da Filosofia Clínica. As pessoas “matam” o corpo (daí vêm os males como obesidade, dores e stress, entre outros) e é preciso saber as causas disso. Mais uma vez, a interdisciplinaridade é a tônica dos trabalhos com Filosofia Clínica, explica Packter, citando correntes neo-behavioristas, da neurofisiologia, da farmacologia e da gestalt, todas consideradas pelos filósofos clínicos.

Origem antiga


O Aconselhamento Filosófico data de 1981, praticado, tal como se estabeleceu, por Gerd Achenbach, em Cologne, Alemanha. Com a elaboração de uma metodologia para a atuação de conselheiros, a corrente se espalhou pela Holanda, Noruega, Áustria, França, Suíça, Grã-bretanha, Canadá, Estados Unidos e Israel, entre outros países. O uso da Filosofia para aliviar a aflição das pessoas, porém, é bem mais antigo –  tem mais de 2 mil anos, quando  os chamados epicuristas se destacavam na Grécia.



Pela definição de Epicurus, a Filosofia se caracterizava como uma "terapia da alma", cuja fundamentação e argumentos tinham o sentido claro de minimizar os sofrimentos humanos. Já os Estóicos acreditavam que se tratava de uma ciência que nos ensinaria a arte de viver bem, mediante a difusão de seus conceitos. Ensinar conceitos, porém, para Sócrates, não era a função de um filósofo. Ele usava Filosofia para encorajar seus parceiros nas discussões sobre seus pensamentos e atitudes em todos os campos da vida. Seus escritos foram usados por Platão em situações parecidas e, assim a "Philosophische Praxis und Beratung", velha conhecida do universo platônico, foi traduzida como "Filosofia Prática" ou "Filosofia do Aconselhamento".

Um best-seller, muitas discussões

Em Mais Platão, menos Prozac (editora Record), Lou Marinoff não desfaz da importância da terapia psicológica e da a assistência psiquiátrica. Ressalta que, quando executadas por profissionais competentes, são altamente eficazes. E mais eficientes se tornam quando aliadas ao aconselhamento filosófico. Esta é, para o autor, uma abordagem mais completa, com respostas para as questões afetivas, profissionais e até mesmo para o medo da morte. Em seu Aconselhamento Filosófico, por meio do processo PEACE (problema, emoções, análise, contemplação, equilíbrio), os aconselhados aprendem a lidar com suas angústias cotidianas. O que Marinoff faz, na verdade, além de mostrar sua metodologia, é provocar psiquiatras e psicólogos, ao dar a entender que eles invadiram um campo de atuação que é da Filosofia.

Para saber mais:

www.filosofiaclinica.com.br – Página do Instituto Packter, berço da Filosofia Clínica

www.appa.edu – American Philosophical Practioners Association (APPA), nos Estados Unidos

www.loumarinoff.com – Página de Lou Marinoff