O Popular
Goiânia, 28 de dezembro de 2004
A
Filosofia a serviço do Divã
Maria
José Braga
O filósofo Lúcio Packter estudou filosofia na PUC do Rio Grande do Sul/Fafimc. Ainda como aluno, participava de um grupo de estudos que se dedicava a refletir, entre outras coisas, sobre como a filosofia está presente na vida das pessoas.
Das reflexões juvenis e de suas pesquisas individuais, surgiu a filosofia clínica, que ele considera apenas uma especialidade da filosofia, mas que, como o nome diz, se propõe a tratar pacientes com “problemas existenciais”.
Lúcio tem vários livros publicados e já conquistou adeptos em diversos Estados brasileiros. Em Goiás, a Faculdade de Filosofia São Miguel Arcanjo, de Anápolis, abriu sua segunda turma de especialização em filosofia clínica. Em uma de suas visitas ao Estado, ele concedeu a seguinte entrevista ao POPULAR.
Dr. Lúcio
Packter, precursor da Filosofia Clínica no país.
O
que é a filosofia clínica?
Basicamente, a filosofia clínica é o uso da filosofia acadêmica nos
hospitais, nas escolas e em qualquer âmbito da área de humanas.
Como
se dá esse uso da filosofia?
Vou mostrar um exemplo: uma amiga sua não está bem. Passou por um divórcio,
perdeu a guarda de um dos filhos. Ela vai procurar um filósofo clínico. Ela
vai dizer a ele que está muito depressiva. Ele diz a ela: procure um clínico
geral e faça todos os exames. Ele quer um check-up para verificar se o problema
não é endócrino, neurológico, vascular. Afastada a possibilidade de ser algo
orgânico, o filósofo vai pedir a ela que lhe conte a sua vida, do seu
nascimento até o momento presente. Mas quando a pessoa está muito perturbada,
ela mistura os conteúdos de sua história; é como se embaralhasse as páginas
de um livro, por isso o filósofo pode levar quatro, cinco meses para chegar à
história de vida da pessoa.
E
depois?
Quando o filósofo finalmente chega à história de vida da pessoa, ele começa
a estudar a estrutura do pensamento dela. Por exemplo, se quiser saber como a
pessoa vê o mundo, o filósofo vai na história de vida dela e retira,
contextualizadamente, essa informação. Se quiser saber o que ela acha de si
mesmo, faz a mesma coisa. São 30 tópicos estruturais que encerram tudo aquilo
que está dentro da pessoa, os dados cognitivos, os emocionais, os éticos, os
empíricos. Então, o filósofo começa a bater esses dados. Às vezes uma
pessoa tem choques violentíssimos em sua estrutura. Sua amiga, por exemplo, ela
pode ter como pré-juízo que, quando a gente ama, não deve se separar da
pessoa amada, mas ela se separou. Houve um choque violento dentro da estrutura
dela. Uma das conseqüências é depressão, enxaqueca, câncer etc.
Qual
o efeito terapêutico da enumeração desses tópicos ?
Nenhum. Os tópicos são só para efeitos didáticos. O filósofo faz isso para
estudar a estrutura da pessoa.
Então,
qual o efeito terapêutico da filosofia clínica?
A partir do que eu observar, eu posso atender uma pessoa. Uma pessoa que vem e
diz que está com depressão. Eu não sei de onde vem isso e não posso fazer
nada por essa pessoa. Agora, no momento em que eu, estudando a história da
pessoa, percebo o que está acontecendo, aí passo para o que chamamos de
procedimentos clínicos.
Quais
esses procedimentos?
Vamos continuar com o exemplo da sua amiga. Ele está com depressão e já
descartamos causas orgânicas. Depois de conhecer sua historicidade, vou
observar os tópicos estruturais e posso perceber, em cada tópico, que tem
coisas que podem atenuar o problema e outras que podem acentuá-lo. Conversar
com as amigos sobre o problema, por exemplo, atenua. Ir a locais em que ela é
julgada pela separação agrava. Isso vai sendo trabalhado a cada consulta.
Qual
o fundamento científico da filosofia clínica?
Tanto a filosofia clínica quanto a psicologia e a psicanálise não são ciências,
são disciplinas da área de humanas. O que temos são resultados empíricos do
processo. Se eu vou na história da pessoa, tiro um referencial dela e utilizo,
ou funciona ou não funciona.
No
caso da psicanálise e da psicologia, há uma preparação para os profissionais
que vão atuar em clínica. No campo da filosofia, as escolas não estão
preparando os filósofos para clinicar. A Faculdade São Miguel Arcanjo, de Anápolis,
está abrindo sua segunda turma para formação de filósofos clínicos. No
Brasil inteiro, chefes de departamentos, doutores, estão fazendo filosofia clínica.
A
formação se dá em nível de pós-graduação?
Para ser um filósofo clínico, a pessoa precisa ter passado por um curso de
filosofia reconhecido pelo Ministério da Educação. Depois disso, é preciso
mais dois anos de estudos de pós-graduação em filosofia clínica. Além
disso, é preciso fazer estágio e passar por uma avaliação final, feita por
uma comissão. Se passar por toda essa bateria, vai poder clinicar.
Qual
a diferença entre a filosofia clínica e a psicologia?
A diferença é completa: na fundamentação, na metodologia e nos autores. Não
existe um único autor da psicologia, da psicanálise ou da psiquiatria em
nossos estudos; todo ele é calcado nos filósofos da academia. A fundamentação
da filosofia clínica vem da filosofia acadêmica. A filosofia clínica nada
mais é do que uma especialização da filosofia, como a filosofia da arte, a
filosofia política etc. Mas a filosofia clínica está se propondo a ter uma
função terapêutica, coisa que os ramos da filosofia, como a filosofia política,
por exemplo, nunca pretenderam.
Como
não?
Você falou da filosofia política... Temos autores que foram basilares na
Europa. Norberto Bobbio, por exemplo. A filosofia política dela não só
aconselhou, mas dirigiu nações inteiras.
Mas
volto a insistir na função terapêutica.A filosofia clínica não faz
aconselhamento.
Depois
de ouvir, um filósofo clínico faz o quê?
Endereçar uma pessoa existencialmente não significa dizer o que ela vai fazer.
Há pessoas no consultório que não podem ouvir um conselho, porque não
aceitariam. O filósofo clínico tem de ver na história delas como chegar até
elas. Para algumas pessoas, eu utilizo os processos lógicos de interrogação.
Pergunto o que ela acha que pode ter motivado sua angústia.
Mas
isso é muito parecido com a psicologia.
Em alguns aspectos sim e em outros não. A psicologia trabalha com o
comportamento. A filosofia lida com a existência. Há uma diferença de abismo
entre as duas coisas. Quer ver um exemplo? Se você foi demitida, tem contas
para pagar e fica angustiada, essa angústia pode ser tratada por um psicólogo.
Agora veja a diferença do que os filósofos consideram uma angústia
existencial. Você está bem no trabalho e em casa. Mesmo assim está
angustiada. Esta é uma questão filosófica. Mas não existe uma linha definida
separando uma coisa da outra. Por isso, às vezes os filósofos clínicos vão
lidar com angústias comportamentais e os psicólogos, com questões
existenciais.
Por
que a filosofia clínica é criticada, não só por psicólogos e psicanalistas,
mas sobretudo pela grande maioria dos filósofos?
Grande maioria eu não diria. Mas você conhece alguma pessoa que tenha
unanimidade? Não existe nenhum filósofo que tenha tido unanimidade. É parte
do discurso acadêmico a confrontação de idéias. Sem isso teríamos dogmas e
não filosofia. Não temos de rechaçar as críticas, temos de ouvir o que os críticos
têm a dizer.
Quais
são os filósofos que são mais usados na filosofia clínica?
Todos os filósofos da fundamentação são utilizados. Por exemplo, na parte da
lógica, usamos a lógica aristotélica. Na parte da epistemologia, temos
Popper; na parte da historicidade temos vários filósofos, inclusive Hegel.
Depende de como a história da pessoa vai nos levar a trabalhar.
Parece
estranho que a teoria de Karl Popper, por exemplo, um filósofo que trabalhou
principalmente a teoria do conhecimento e o filosofia da ciência, possa ajudar
alguém a resolver seus problemas existenciais ou comportamentais.Se eu tenho um
pré-juízo – pessoas de uma determinada raça não prestam – e entra no meu
consultório alguém dessa raça, não vai ser possível o trabalho, porque não
importa o que ela diga, eu já tenho o meu prejulgamento prontinho. Isso vem de
Popper. A grande crítica que ele faz à ciência é de que ela não é neutra.
O
filósofo clínico pode fazer diagnóstico?
Pode, desde que sejam diagnósticos no âmbito existencial. A dignose médica e
psicológica não.
O
que o senhor chama de diagnóstico existencial?
Isso que eu falei. A pessoa chega no consultório, diz que está com séria
crise depressiva, eu proponho um check-up, se não tem nada orgânico, aí é
com o filósofo.
A
depressão é um problema existencial?
Se uma depressão é causada por um mal orgânico, ela vai ter de ser tratada
organicamente. Se não há nenhuma questão orgânica, ela pode ser existencial
sim.
"A
psicologia trabalha com o comportamento.
A
filosofia lida com a existência”
Lúcio
Packter