Estado de São Paulo

26 de fevereiro de 2006

 

No lugar do divã, a Filosofia Clínica

Aconselhamento que tende a substituir a psicoterapia já é oferecido em centros universitários e hospitais

Simone Iwasso

A filosofia saltou das empoeiradas prateleiras da bibliotecas, se instalou nas modernas cadeiras das escolas e cafés, recuperou espaço na grade escolar, subiu na lista dos mais vendidos das editoras e, num ato de ousadia, expulsou Freud do divã. Com nomes variados - filosofia prática, filosofia clínica, aconselhamento filosófico - ganhou clientes e pacientes. Dividiu profissionais. Virou moda. Alternativa à terapia. E, agora, oferecida dessa maneira, para muitos deixou de ser filosofia.

O que é o amor? Leia Platão. Como lidar com as mudanças? Ovídio auxilia. O trabalho não vai bem? Veja citações de Voltaire. Um dos responsáveis por esse uso da filosofia na vida cotidiana é o filósofo canadense Lou Marinoff, autor do best-seller Mais Platão Menos Prozac - A Filosofia Aplicada ao Cotidiano (Ed. Record, 384 páginas, R$ 41,90). Professor da City College de Nova York, ele criou o aconselhamento filosófico, que une filósofos para ajudar pessoas a lidar com suas angústias.

Marinoff, que estará no Brasil pela primeira vez no mês que vem (leia entrevista abaixo), encontrará por aqui a Filosofia Clínica - um atendimento semelhante ao seu -, reconhecida como especialização pelo Ministério da Educação. Criada no Rio Grande do Sul pelo filósofo Lúcio Packter, hoje é oferecida em centros universitários, clínicas e hospitais.

"Eles não dão bula, nem receita. Indicam caminhos para você se conhecer melhor, perguntar o que você quer e por que não toma providências para isso", afirma a produtora cultural Vânia Silva, de 24 anos. Há oito meses com sessões semanais, ela mudou de emprego e se libertou das amarras que deixavam sua "vida monótona". Para ela, uma das compradoras dos inúmeros livros que falam de filosofia de maneira mais simples, foi Marx, e a análise da sociedade capitalista, quem a ajudou a enfrentar o medo de abandonar o trabalho.

Idealizador do método, o filósofo Lúcio Packter encontra nas variadas escolas de pensamento a ajuda de que muitos precisam para suas "crises existenciais". Dos conflitos amorosos aos problemas no trabalho, ele defende as interrogações que a filosofia acrescenta na mente das pessoas. "Alguém depressivo que vai ao médico e toma um remédio abortou o processo. Há depressões que são orgânicas, patológicas. Outras são existenciais e o quadro orgânico é um coadjuvante", opina. Nesses casos, diz, ao ouvir a história de vida e entender a maneira de pensar, o filósofo ajuda o paciente a reverter o quadro. E abolir os remédios. Tudo isso em sessões de 50 minutos, a partir de R$ 60.

E se ele se confundir e o quadro for patológico? Segundo Mônica Aiub, professora do Centro Universitário São Camilo, que inclui a disciplina na graduação, a formação do filósofo clínico dura dois anos e inclui aulas com um psiquiatra, que ensina a identificar sintomas de problemas graves - necessariamente tratados por médicos. Ela conta que entre seus alunos alguns optaram pela filosofia já pensando em especializar-se nos atendimentos.

"Como no processo cartesiano, de dividir em partes, dividimos os relatos até montar um quadro com a estrutura de pensamento da pessoa. Muitas vezes não citamos filósofos." Em outros casos, recorre-se aos livros. "Havia uma paciente que tinha muitos medos que a travavam. Trabalhamos a intencionalidade de Merleau-Ponty para ela ver como direcionar e focar suas emoções."

Pelo tom terapêutico, de ajuda, o método recebe críticas mesmo de quem defende uma aproximação maior do mundo acadêmico com a sociedade. "Eu fico triste de dizer que acho uma enganação. A filosofia não pode simplesmente ajudar alguém no sentido da caridade. É um enfrentamento com a vida, e nesse exercício de pensamento a pessoa pode se deparar com questões e respostas cruéis. É o contrário da consolação da auto-ajuda", afirma a filósofa Márcia Tiburi, professora e autora de livros de filosofia, que participa do programa Saia Justa, do GNT. "O encontro que a filosofia teve com a prática foi a psicanálise", resume. Ela alerta que, quando o profissional começa a dar o rumo para alguém, perde o potencial crítico, essencial no olhar filosófico.

Pensar não tem de ser chato - pode ser uma aventura emocionante. Mas, sem cair na "tentação dos discursos prontos e soluções fáceis", defende o filósofo Charles Feitosa, professor de pós-graduação da UniRio e autor do livro Explicando a Filosofia com Arte (Ediouro, 200 páginas, R$ 44), no qual tenta escrever filosofia de maneira mais didática, mas sem perder o rigor acadêmico. "Se pop for sempre sinônimo de uniforme, superficial e comercial, me inclua fora dessa, como dizem os cariocas. A filosofia pop, tal como eu a entendo, pode, ao contrário, desconstruir os preconceitos contra a reflexão", diz. "Quando dá soluções, escorrega." Entra no terreno que para ele deixou de ser filosofia. E que para outros é a filosofia clínica.