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Folha de S. Paulo ( julho de 1997 ) Na terra do analista de Bagé (personagem de Luis Fernando Verissimo que considerava que muitos problemas emocionais são curados com um “joelhaço”) profissionais formados em Filosofia estão abrindo clínicas, assumindo divãs e tentando resolver problemas existenciais e emocionais das pessoas - função que era exclusiva de psicólogis e psiquiatras. Os auto-intitulados filósofos clínicos surgiram em Porto Alegre, mas já se espalham pelo Brasil. São reconhecidos pelo Ministério da Educação, mas recebem críticas dos Conselhos de Psicologia e Psicanálise que afirmam temer que eles tragam mais problemas que solução. Para clinicar, todos fazem o curso que dura dois anos. O atendimento realizado pelos filósofos clínicos é semelhante ao de analistas: a pessoa fala para ser auxiliada pelo terapeuta a resolver seus próprios problemas. · A diferença é o preço. Enquanto psicanalistas cobram em média entre R$ 80 e R$ 150, os filósofos cobram entre R$ 30 e R$ 100. · Os 15 primeiros filósofos clínicos do Brasil se formaram o ano passado, após dois anos de especialização. O Conselho Regional de Filosofia Clínica (CRFC) vai ser registrado no próximo dia 19, no 1 Cartório de Porto Alegre, segundo Lúcio Packter, idealizador da Filosofia Clínica no Brasil. · Em vez de usar o método freudiano de análise do ego, ou o junguiano - que define o “tipo psicológico” do paciente - , o filósofo clínico estuda a “Estrutura de Pensamento” de seu cliente. · Eles usam na prática os métodos e sistemas desenvolvidos por filósofos como Kant, Espinoza, Platão, Sócrates, Hegel e Wittgenstein, entre outros. · Uma terapia na Filosofia Clínica dura, em média, seis meses. As sessões são de 50 minutos. Não há ainda uma tabela de preços definida, mas a maioria das clínicas cobra de R$ 30 a R$ 100 por sessão. · Segundo Deusdeth Estanislau de Oliveira, 38, que fez o curso de especialização, os filósofos clínicos estudam montar cooperativas para baratear os custos das sessões. · Ele afirma que o ambiente das sessões deve ser o mais simples possível. “A pessoa senta na cadeira, no chão, onde quiser. O importante é deixá-la à vontade.” Aristóteles X Freud “O pai da psicologia é Aristóteles. Nós, filósofos, só estamos voltando a um espaço que foi nosso no passado”, diz o “pai” da Filosofia Clínica brasileira, Lúcio Packter. Ele diz ser “compreensível” a oposição de psicólogos e filósofos, que classificam o movimento de “absurdo” e “sem propósito”. “Os psicoterapeutas e psiquiatras são filhos da Filosofia. O que eles fazem hoje é o mesmo que filósofos faziam há 2500 anos: ajudar as pessoas a resolver suas crises interiores, existenciais.” Três anos depois de criado o primeiro curso de especialização, a Filosofia Clínica vive um “boom” na abertura de consultórios pelo país: quatro clínicas filosóficas já estão funcionando o Rio Grande do Sul (Porto Alegre, Santa Maria, Caxias do Sul e Passo Fundo). Em São Paulo, a primeira clínica está sendo aberta em Ribeirão Preto. Duas outras devem abrir na capital até dezembro. Em Viamão (a 24 km de Porto Alegre), a professora Cleuza Maria Bittencourt de Aguiar, 60, formada em Filosofia Clínica, decidiu usar a nova profissão para atender - gratuitamente - pacientes em estado terminal e seus familiares. “A morte nos deixa impotentes, sem saída. Por isso, decidi fazer algo com pessoas que estão próximas desse ponto final.” Sessões duram 50 minutos Uma sessão de Filosofia Clínica se assemelha às sessões de psicoterapias tradicionais. A arquitetura e a decoração das clínicas também são semelhantes. Na primeira sessão o cliente toma contato com os princípios da terapia. A sessão dura 50 minutos. A pessoa pode ficar sentada ou deitada numa poltrona ou divã. Pode também sentar no chão, sobre almofadas. A escolha é livre. Nessas sessões, o cliente começa a lembrar passagens de sua vida, desde a mais tenra infância até os dias atuais. Este relato é gravado - caso haja consentimento. Se em uma sessão o cliente não quer falar, ele tem opção de ir a uma sala onde poderá pintar, fazer esculturas em argila ou tocar um instrumento. As sessões, que podem durar até seis meses, podem ter trilhas sonoras escolhidas pelo próprio cliente. Perfil do “paciente” · O perfil da pessoa que procura a Filosofia Clínica é o mesmo dos pacientes de psicólogos e psiquiatras: pessoas de classe média, profissionais liberais e professores. Formações são diferentes A Filosofia Clínica brasileira foi desenvolvida pelo filósofo e psicólogo Lúcio Packter, inspirado em movimento iniciado por filósofos holandeses na década passada. Packter construiu um sistema baseado nos métodos de filósofos como Kant, Espinoza e Descartes, entre outros. A Filosofia Clínica tem três definições básicas: A) A aplicação do conhecimento filosófico à psicoterapia. B) A atividade filosófica aplicada à terapia do indivíduo. C) As teorias filosóficas aplicadas às possibilidades do ser humano. Diferenças profissionais Só pode ser filósofo clínico quem for formado em Filosofia. Nenhum outro curso dá direito ao exercício dessa profissão. Para ser psiquiatra é necessário ter formação em medicina e fazer de dois a três anos de residência. A psicanálise é diferente: para ser psicanalista é preciso ter curso superior (em qualquer área) e fazer um curso de especialização que pode chegar a seis anos, segundo a Sociedade Brasileira de Psicanálise. Mais de 150 se formam este ano Pelos menos 150 novos filósofos deverão concluir a especialização em Filosofia Clínica até dezembro. Para a maioria dos estudantes entrevistados, o curso representa o “resgate” da profissão, que hoje se resume às salas de aula. “Até conhecer o curso de especialização, eu tinha uma dúvida: será que a filosofia pode ter alguma aplicação prática na vida? Hoje eu sei que há uma aplicação e que ela pode melhorar a vida das pessoas”, disse Silvia Armani, 21, que conclui o curso em dezembro. O que é a Filosofia Clínica · É um sistema terapêutico baseado no uso prático de vários métodos e sistema filosóficos ocidentais dos últimos 5000 anos. Nenhum método ou teoria da Filosofia Clínica tem qualquer relação com a psicologia ou a psiquiatria. · Assim como a psicanálise e a psicoterapia, baseia-se na relação (paga) entre cliente e terapeuta - no caso, o filósofo clínico que vai ajudar o cliente a se comprender, trazer à luz da consci6encia seu problema e resolvê-lo. A Filosofia Clínica orienta o cliente a recapitular integralmente sua vida. Ele vai descrever fatos, idéias e sensações desde a primeira lembrança da vida até os dias atuais. Essa recapitulação da vida é gravada (se houver consentimento) e avaliada pelo terapeuta. Depois de cinco ou seis sessões, o cliente fez um resumo de sua vida e o filósofo tem em mãos um raio x detalhado da estrutura de pensamento dessa pessoa. Com isso ele pode avaliar onde há “choques” internos e externos - que vão se refletir nas relações do indivíduo consigo mesmo, com os outros e com o mundo. Em teoria, a pessoa ganha mais consciência de si. Clientes aprovam ‘tratamento’ A professora estadual G.B.B., 38, foi uma das primeiras “pacientes” da Filosofia Clínica no Brasil. Ela decidiu procurá-la depois de tomar contato com seus princípios por meio de seu marido, filósofo formado em Porto Alegre. O Código de Ética da Filosofia Clínica não permite que os clientes sejam expostos em meios de comunicação. Assim mesmo, ela concordou em falar à Folha, desde que não fosse identificada. Leia a seguir trechos de seu relato, feito na última quinta-feira em uma sala do Centro de Estudos do Instituto Packter, em Porto Alegre. “Antes de chegar à Filosofia Clínica eu fiz um ano de psicanálise. Ía uma ou duas vezes por semana à médica, mas não resolvia nenhum dos meus problemas. Pelo contrário, acho que apenas criei uma dependência enorme dela. Quando minha psicanalista saiu de férias por dois meses quase morri. Não sabia o que fazer, com quem conversar...Tinha crises de descontrole emocional. Gritava e chorava sem nenhum motivo aparente. Um dia, meu marido me falou sobre o trabalho da Filosofia Clínica e eu resolvi experimentar. Desde a primeira consulta, mudei para melhor. Aqui a gente fica à vontade, não é bombardeada por questionamentos ou perguntas, por exemplo, sobre como era meu relacionamento com meus pais. Em quatro meses de consultas eu sentia que já tinha consciência do que acontecia no meu interior. As crises foram acabando aos poucos. Comecei a trabalhar meus problemas e acabei apaixonada pela Filosofia. Minha vida mudou.” Estudante universitário de família classe média de Porto Alegre, G.,21, também falou à Folha sobre sua experiência na Filosofia Clínica. A seguir, os principais trechos de seu relato: “Há dois anos eu comecei a fazer terapia com um psicólogo. Não me sentia à vontade para falar muitas coisas. Outras, que ele dizia, eu não entendia. No ano passado, comecei a fazer clínica filosófica e posso garantir, foi o melhor ano da minha vida. Mudei interiormente. Hoje sou uma pessoa melhor. · legal é que nessa terapia não existe os conceitos de ‘normal’ e ‘doente’. Passei a me aceitar mais - tanto minhas qualidades como meus defeitos. |
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