Viver Psicologia

outubro de 2003.

 

Conhece-te para curar-te

Por Faoze Chibli

 

                              

O autoconhecimento é uma busca humana, desde a Antiguidade. Muitos sofrem por ele, ou por sua falta. O princípio filosófico “Conhece-te a ti mesmo”, proferido por Sócrates, encontra eco nos dias de hoje, talvez mais do que nunca. Apontado pelo oráculo de Delfos – mais importante oráculo da Grécia antiga – como o homem mais sábio de seu tempo, o filósofo Sócrates era um andarilho que conversava com as pessoas, ouvindo-as, fazendo perguntas e despertando polêmicas. Essa prática foi uma das sementes para as atuais terapias. A maior parte das abordagens psicanalíticas tem por base o diálogo. Depois, a identificação de padrões comportamentais e a discussão de soluções para os sofrimentos. Os meios para atingir esse fim, entretanto, enveredaram por diferentes caminhos. E surgem conflitos entre crenças antagônicas. Movimento surgido em 1995, a Filosofia Clínica parece remontar às técnicas socráticas. E também causa polêmica.

 

Lúcio Packter, filósofo clínico e criador do Instituto Packter (leia entrevista na página 18), entendeu que as correntes conhecidas não atendiam seus anseios. “Minha inspiração iniciou-se com os estudos de Filosofia, com a constatação de que manifestações como as psicopatologias são fenômenos diminutos em relação ao ser humano.”

 

A partir de pesquisas no exterior, Lúcio começou a sistematizar um novo processo, que utiliza o conhecimento filosófico no auxílio ao paciente. No Brasil, a idéia tomou forma, concretizando-se na criação do Instituto Packter e na disseminação dessa prática, cuja formação acadêmica já possui reconhecimento oficial pelo Ministério da Educação.

 

Mesmo assim, não faltam questionamentos sobre a validade dessa nova forma de atuação terapêutica. Odair Furtado, psicólogo, professor e presidente do Conselho Federal de Psicologia, considera a Filosofia Clínica um produto da “concepção neo-liberal” do mercado. Para ele, os filósofos, em busca de novos campos de trabalho, tentam se apropriar da função do psicólogo. “A psicologia implica métodos e técnicas que não são exatamente do campo da Filosofia”, Furtado justifica.

 

Mônica Aiub, filósofa clínica e presidente da Associação Paulista de Filosofia Clínica, rebate as críticas. Graduou-se me Filosofia e fez pós-graduação em Filosofia Clínica. Ela decidiu se aprofundar nesse estudo após passar pelo processo com Lúcio Packter. Hoje, além de prática clínica, ela participa de uma futura associação nacional para esses novos profissionais. Ela explica que a formação mínima do filósofo clínico requer mais de seis anos de estudos. Além da graduação em Filosofia,  dois anos devem ser dedicados ao preparo em prática clínica. Nessa segunda etapa da formação profissional, a partir do décimo oitavo mês de curso, o aluno inicia um estágio supervisionado e é avaliado diretamente por dois profissionais. Aulas de psiquiatria complementam o aprendizado. O objetivo não é exercer a psiquiatria, mas conseguir identificar os casos em que são necessários os exames clínicos.

 

                        

 (Mônica Aiub - presidente da Associação Paulista de Filosofia Clínica)

 

 

                       Seriedade na Formação 

 

Todos esses requisitos não convencem José Otávio Fagundes, psicanalista e secretário-geral da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP) do valor dessa modalidade clínica. “É óbvio que há filósofos com extrema sensibilidade. Temos até um filósofo na SBP. Mas o campo da psicanálise é a investigação da mente e isso exige formação séria e demorada. Não é bate-papo. Há casos sérios, neuroses, psicoses, narcisismo.”

 

Fagundes define a formação dos psicanalista  apto a ingressar no SBP como “altamente exigente e sofisticada”. Para fazer o curso, que dura de quatro a cinco anos, o estudante precisa ser graduado, submeter-se a um processo de análise supervisionada e ter perfil adequado à atividade, pois, segundo o presidente da entidade, pessoas altamente perturbadas também podem ir para essa área. Somente uma preparação sólida livraria o psicanalista de “entrar no jogo” do paciente, que nem sempre agüenta ser revelado no processo terapêutico.

 

Para Mônica Aiub, a diferença fundamental entre Filosofia Clínica e os outros processos terapêuticos ou analíticos é a inexistência de “teorias prévias” sobre o comportamento do paciente. Só para ilustrar , em uma análise junguiana, em algum momento do processo, paciente e analista discutirão arquétipos e outros elementos trabalhados nessa corrente analítica. Já na Filosofia Clínica “ o instrumental é construído individualmente”, descreve Mônica Aiub.

 

Não significa que não existem etapas específicas a serem seguidas. Primeiramente, há uma contextualização da pessoa em seu ambiente, quando se identificam os elementos que compõem sua realidade. Depois disso, desvenda-se a história do paciente, em um processo que deve ser espontâneo, com pouca ou nenhuma interferência do clínico. Por fim, trabalha-se com o modo da pessoa lidar com as questões. Somente nesse estágio, o clínico desenvolverá, em conjunto com o paciente, formas de lidar com os problemas.

 

A postura do interlocutor dependerá da personalidade de quem está se tratando. Com base neste diálogo o filósofo clínico se aplicará em encontrar a forma eficaz de ajudar aquela pessoa, seja questionando-a ou apresentando idéias.

 

Odair Furtado, entretanto, considera equivocado este método. “ É um absurdo construir uma teoria para cada sujeito, é o atraso do atraso.” Ele também questiona a competência  e a validade dos estágios em Filosofia Clínica, além de não concordar com a busca individual de soluções.

 

 

                 Contribuições do Saber Filosófico

Confira o diálogo de Viver Psicologia com o criador da Filosofia Clínica

 

 

VIVER PSICOLOGIA – Qual foi a inspiração para a idéia da Filosofia Clínica?

 

LÚCIO PACKTER - A Filosofia Clínica surgiu como conseqüência do trabalho que eu desenvolvia em hospitais, como conseqüência do meu afastamento das concepções psiquiátricas. Desde que Philippe Pinel, em 1793, dirigiu o manicômio de Bicêtre, afastando os vomitivos, a sangria, os purgantes, e procurou uma relação mais afetuosa com as pessoas internadas, desde lá iniciou uma busca no humanismo por concepções outras. Minha inspiração iniciou com os estudos em Filosofia, com a constatação de que as manifestações como as psicopatologias são fenômenos diminutos em relação ao ser humano. Considerar uma pessoa a partir de uma patologia é a verdadeira patologia. Na minha opinião, e isso hoje virou um lugar comum, a ênfase deve ser dada à pessoa. A tese de doutorado de Michel Foucault na Sorbonne, Folie et déraison: histoire de la folie à l'âge classique, na qual pesquisou o modo como era tratada a loucura no século XVII é tão atual que ainda inspira os filósofos ao trabalho que comecei. Os instrumentos de tortura e de mutilação mental não desapareceram, apenas foram aprimorados e ganharam sutilezas como presenciamos em propagandas que mostram como medir a felicidade pelo carro que se tem na garagem.

 


VIVER PSICOLOGIA - Pode-se dizer que a base do processo é o conceito do Oráculo de Delfos, "Conhece-te a ti mesmo"?

 

LÚCIO PACKTER - Defender o autoconhecimento como um pressuposto a seguir em clínica é algo bastante sintomático e constantemente duvidoso em sua eficácia. Conhecer seus próprios problemas pode tornar a pessoa uma especialista no assunto, mas não quer dizer, necessariamente, que esta será a prerrogativa do processo. Também não quer dizer que ela se beneficie com isso. Além disso, qual o ponto de perspectiva desse presumido autoconhecimento, conforme considerou Maurice Merleau-Ponty na Phénoménologie de la perception? Algumas questões se encaminham por diálogo, conforme demonstrou Martin Buber em sua obra Ich und Du; alguns fenômenos reorientam-se por aspectos somáticos, como mostra a obra Vier Bücher von menschlicher Proportion, do pintor Albrecht Dürer; alguns dilemas pedem entendimentos reflexivos sobre a religião, como Feuerbach realizou em Das Wesen des Christentums. Enfim, conhecer-se talvez seja apenas uma parte ou uma das respostas.

 


VIVER PSICOLOGIA -  Por que ainda há resistência na comunidade acadêmica e profissional no sentido de aceitar a validade clínica dessa abordagem?

 

LÚCIO PACKTER - As resistências caem rapidamente. Hoje, psicólogos, psiquiatras, cirurgiões, dentistas, filósofos estudam a Filosofia Clínica. Para se ter uma idéia, o presidente da Associação Goiana de Filosofia Clínica é um psiquiatra: João Batista de Castro. Ademais, as resistências são necessárias para o debate acadêmico. Não se imaginava que a Filosofia pudesse transpor a área do aconselhamento entrando na área clínica. Mostramos que isso é possível, se feito com responsabilidade, fundamentos, métodos empíricos. Hoje, meus alunos trabalham em lugares como o Hospital das Clínicas, dirigem departamentos de Filosofia, montam suas clínicas em parceria com psicólogos e médicos.

Também penso que é importante considerarmos as resistências que Freud encontrou quando publicou Die Traumdeutung, em 1900; as dificuldades de Jung após publicar Wandlungen und Symbole der Libido, em 1912; as perseguições a Wilhelm Reich após sair Die Funktion des Orgasmus, em 1927. Comigo não tem sido diferente.


VIVER PSICOLOGIA - O senhor poderia descrever o processo de tratamento do paciente?

 

LÚCIO PACKTER - O filósofo estuda a historicidade da pessoa desde o nascimento até os dias atuais. Nesta cuidadosa pesquisa, utiliza métodos oriundos da analítica de linguagem, da epistemologia, da lógica, principalmente. Os cuidados são necessários, pois a pessoa pode inventar, omitir, deturpar, esquecer elementos em sua história; aliás, estes eventos são parte constitutiva da historicidade da pessoa. Depois, o filósofo considera a estrutura do pensamento da pessoa; são todos os fenômenos que habitam sua malha intelectiva: emoções, dados axiológicos, éticos, cognitivos etc. Somente então são considerados os procedimentos clínicos, que na Filosofia Clínica não existem a priori.

 


VIVER PSICOLOGIA - Que tipo de público procura essa abordagem? Pessoas com experiência prévia em terapias?

 

LÚCIO PACKTER -O filósofo trabalha essencialmente com as questões existenciais. Lida com casos como “acte gratuit” de André Gide e suas decorrências até o suicídio; pesquisa a eutanásia semelhante ao que Thomas More fez em De optimo publicae statu deque nova insula Utopia; estuda as angústias derivadas do  “Das in-der-Welt-Sein” de Heidegger; ergue indagações  sobre tristezas fundas como a que se abateu sobre Bizet, após 1865, depois da estréia de Les Pêcheurs de perles. Enfim, o filósofo trabalha as disposições existenciais da pessoa. Nesse sentido, ele conta com o auxílio interdisciplinar de seus colegas médicos, psicólogos e outros.