Filosofia agora é pop

AOL – Revista

04 de setembro de 2004

                                                        

Antes relegada aos círculos acadêmicos, a filosofia cai no gosto de artistas, empresários, socialites e estudantes. O interesse pelo assunto leva à multiplicação de cursos ministrados por professores de renome, traduz-se na vendagem de livros de linguagem acessível e até pela expansão de práticas contestadas de aconselhamento filosófico e filosofia clínica

Por Ana Santa Cruz e Rodrigo Brancatelli

ANAMSANTACRUZ@aol.com

 

A empresária e socialite Yara Baumgart, freqüentadora assídua das páginas de Caras, fez. A atriz Claúdia Abreu, a malvada Laura da novela “Celebridade”, faz. O ex-jogador de futebol e neo-ongueiro Raí vai fazer. Yara formou-se recentemente pela PUC de São Paulo. A atriz divide-se entre os estúdios de gravação de novelas e os bancos acadêmicos da PUC do Rio de Janeiro, onde cursa o quarto ano. Raí foi atrás de uma solução mais imediatista em vez de ralar quatro anos em uma universidade: matriculou-se em uma das turmas do curso “Os Pensadores” da Casa do Saber, instituição comercial inaugurada no ano passado em São Paulo e que vai de vento em popa na missão de dar um lustre no conhecimento durante encontros quinzenais, mediante o pagamento de R$ 630.

Yara, Cláudia e Raí são alguns dos nomes mais célebres entre o crescente número de interessados em conhecer a fundo a tal da filosofia. Nos últimos anos, formar grupos sob a orientação de um professor para discutir o pensamento de nomões como Decartes, Kant e Nietzsche extrapolou o ambiente das universidades e, digamos, ganhou as ruas. “Hoje é até ‘in’ estudar filosofia”, diz Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo e colaborador da AOL do Brasil. E por que isso acontece? “Porque quando se atende às necessidades básicas, a indagação atinge outro nível. Quem se questiona não o faz porque precisa sobreviver. Faz isso porque chegou a um patamar tal de qualidade que pode ir adiante e pensar: ‘O que vou fazer?’, ‘O que vou ser?’. Estas são questões essencialmente filosóficas.”

A busca por respostas alavanca as vendas de livros de filósofos cujo trabalho é direcionado aos leigos. Na Europa, o maior expoente é Alain de Botton. Suíço radicado em Londres, Botton, de apenas 34 anos, mescla seus ensinamentos com uma boa dose de humor ao tratar de questões cotidianas que atormentam a humanidade desde que o mundo é mundo. Em um de seus mais recentes livros, “Consolações da Filosofia” (Editora Rocco), invoca Sócrates, Epicuro, Sêneca, Montaigne, Schopenhauer e Nietzsche para falar de falta de dinheiro, da dor do amor rejeitado, do sentimento de inadequação na sociedade, da ansiedade, do medo de falhar.

Há quem goste do estilo ligeiro e bem humorado de Botton mesmo entre os acadêmicos. “Ele é hábil com idéias. Tanto por traduzir com inteligência os sentimentos inenarráveis do cotidiano quanto por produzir livros filosóficos com linguagem acessível e suscinta”, elogia João Paulo Mascarenhas, professor de filosofia da PUC de São Paulo. Mas a opinião favorável ao autor suíço não é compartilhada por Renato Janine Ribeiro. Ele faz restrição a títulos do tipo “Como Proust pode mudar sua vida”, um dos best-sellers do filósofo Alain de Botton. “Não gosto dos livros no formato de manual que pretendem ensinar apresentando resultados ou soluções. Interessante é o livro de introdução à filosofia que familiariza o leitor com a matéria por meio da dúvida”. O professor paulista também evita apontar obras de introdução que distinguem teses e escolas, o que resulta em algo pesado. Um dos caminhos indicados por ele para os leigos é procurar livros pelos quais o leitor se apaixone. Um exemplo? “O mundo de Sofia”, best-seller de Jostein Gaarder, que ficou na lista dos mais vendidos durante meses no Brasil. “O bom destas obras é que elas ajudam o leitor a identificar o segundo passo: que filósofo ler”, diz Janine Ribeiro.

 

Na mesma linha de Allain de Botton, há o canadense Lou Marinoff, professor da City College de Nova York, e autor de quatro livros, todos best-sellers. Seu título mais famoso, “Mais Platão, menos prozac”, foi publicado em 20 países. No Brasil, foi editado pela Record e traz apresentação de... Paulo Coelho! Por aqui, o livro já está na sexta edição e vendeu 15.466 cópias. Este número o torna um sucesso editorial. Além de viver dos direitos autorais de suas publicações, Lou Marinoff também faz palestras em empresas e em eventos especialíssimos como o Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, e se dedica a um novo ramo de atividade: o aconselhamento clínico. Trata-se de prática que consiste em uma sessão parecida a de psicanálise, na qual o cliente que o procura é bombardeado por perguntas e instado a fazer outras tantas a si mesmo em busca de solução para determinada angústia ou problema. O preço cobrado por sessão é de 100 dólares, valor correspondente ao de uma tradicional sessão de psicanálise. 

Pela prática do aconselhamento filosófico, Marinoff tem sido muito atacado. A principal crítica pode ser resumida na pergunta: como pode um filósofo, portanto, uma pessoa sem treinamento médico, saber se o problema que aflige um cliente não requer intervenção de um médico? A reportagem da AOL fez a pergunta ao canadense: “Filósofos são altamente treinados na arte do diálogo, do questionamento, na arte do pensamento crítico. O que fazemos com as pessoas que nos procuram é ter certeza de que elas realmente têm um problema filosófico e não um de ordem médica. É exatamente isto que fazemos na primeira sessão: descobrimos o motivo que faz com que elas venham a nós”.

A maneira consolidada da prática do aconselhamento filosófico surgiu em 1981, na Alemanha. O primeiro filósofo a dar consultas particulares foi Gerd Achenbach. Como parte de um programa de prevenção ao suicídio ele se pôs à disposição de quem quisesse conversar sobre suas angústias. O filósofo alemão não chegou a elaborar um método de atendimento e até hoje ataca as pessoas que, como Marinoff, usam a filosofia com a finalidade de cura.

Mesmo à revelia de Achenbach, a prática se disseminou pela Europa, pelos Estados Unidos e pela América do Sul. No Brasil, um dos seguidores é o filósofo gaúcho Lúcio Packter que introduziu e radicalizou a prática em Porto Alegre, em 1994. Packter explica o que faz: a pessoa procura um filósofo com uma angústia, e o filósofo, dependendo da natureza da queixa, pede o exame de um clínico geral. “Às vezes uma pessoa apresenta dores de cabeça, ansiedades, angústias e isso é o resultado de choques internos graves. Ficam depressivas porque querem fazer algo que entra em choque com seus valores. O filósofo pode ajudar neste ponto”, diz Packter.

Diante das críticas sobre o perigo potencial de um filósofo tratar com palavras quem precisa de ajuda especializada ele responde: “A filosofia é, por natureza, polêmica por si só. O filósofo aprende desde a graduação a questionar os outros, a se questionar e a ser questionado”. Packter já treinou mais de duas centenas de colegas na mesma prática e faz, em média, de cinco, seis palestras em universidades de todo Brasil todos os meses. Ou seja, ele repete o mesmo caminho trilhado por seus colegas Allain de Botton e Lou Marinoff, transformando a filosofia em um negócio rentável. Algo que provavelmente o pai dos filósofos, o grego Sócrates, nunca imaginou que pudesse acontecer.