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Arquivo com os Exercícios de Filosofia Clínica contendo as respostas comentadas:

 

No texto a seguir retirado da revista de Filosofia, edição 41, Editora Escala, Lúcio Packter trata de seres humanos híbridos. Acompanhe o texto e converse com seus colegas e professores.

 

Anísio, Thati, Anitis: o neohumanismo.

 

Anísio entrava em casa, dava duas voltas à chave, voltava uma, deixava a chave de lado na fechadura, posição horizontal, abria o postigo e olhava rapidamente lá e cá. Pronto, o mundo estava lá fora. O escritório, as vias públicas, os assuntos das finanças. Sexta-feira, 19h10, marcava a folhinha digital pendurada ao lado da televisão. O mundo para Anísio permaneceria lá fora até segunda-feira.

Durante muitos anos Anísio e o mundo se deram bem. Viveram bem, cada um tinha seus espaços, seus tempos, suas coisas, as ousadias e os atrevimentos aconteciam de parte a parte, mas sempre de parte a parte e sem o risco das ousadias de uma parte se atrever a respingar para o outro lado. Fechava a porta, o Anísio, duas voltas na chave, menos uma, posição horizontal, perfeito. E o mundo permanecia lá fora como devem permanecer os mundos para que gente como o Anísio possa viver.

A relação de Anísio com o mundo é de civilidade, social, de estudo, formal, boas vizinhanças. Não há lugar para intimidades e ninguém deseja algo assim. Se o mundo é bom ou mau, se Anísio é bom ou mau, um não dirá isso ao outro; não sabem como dizer e não pensam nisso.

Anísio tem 68 anos, trabalha, não aparenta a idade que tem, parece ter mais. Sabe que existe computador, no trabalho utiliza para fazer cálculos. Mas não vai além disso.

Anísio tem uma sobrinha, Thati, 23 anos, não usa tatuagem, apliques, argolas, não utiliza gírias, estuda e trabalha, tem blog, curte jazz, fala francês fluente; namora uma menina de sua idade e durante o verão namora um homem casado, mas às vezes isso acontece ao mesmo tempo. Thati pinta as unhas de vermelho, mas somente as da mão esquerda; as unhas da mão direita ela não pinta, “para dar um ar assim meio conservador” – conforme diz.

Thati entra na Internet como quem saiu da sala da casa e entrou no próprio quarto. Vamos ver isso novamente: Thati entra na Internet como quem saiu da sala da casa e entrou no próprio quarto. Como ela mora sozinha em um pequeno apartamento, a diferença entre a sala e o quarto é muitas vezes mínima e geralmente nenhuma. Anísio, por exemplo, na única vez em que visitou a sobrinha, achou que tudo fosse uma coisa somente. Thati, que pensa de modo diverso do tio Anísio sobre a maior parte dos assuntos, se sentiria tentada a concordar com o tio se fosse perguntada sobre este assunto. Talvez alegasse que na sala tem um sofá, mas ela sabe que aqueles três almofadões apoiados sobre um estrado de madeira podem ser qualquer coisa, até uma cama ou um sofá.

Thati entra na Internet como quem saiu da sala da casa e entrou no próprio quarto. Isso significa vários caminhos. Ela é nos sites de relacionamentos com a intimidade com que é lendo no sofá de três almofadões em casa; ela é nos chats como é quando distraidamente está sem roupas ouvindo um jazz em seu quarto; Thati pensa que os ambientes que freqüenta na Internet são como um quarto a mais no apartamento. No caso de Thati, um quarto a mais no apartamento quer dizer apenas mais espaço do que já é existente. Não muda a arquitetura, a decoração e as diferenças somente vão sublinhar esta igualdade.

Thati escreve e fala abertamente de suas intimidades, e, se traçássemos uma analogia, seria como se tio Anísio retirasse a porta de casa, as voltas para lá e para cá na chave, os muros, e tornasse livre trânsito o que do mundo surgisse em direção à casa onde mora, tanto quanto o contrário. E como se levasse isso a um tal ponto que em breve já não soubesse mais até onde vai sua casa, onde começa o mundo, até onde o mundo entrou em sua casa, e em pouco tempo talvez isso nem sequer coubesse mais em suas cogitações... que agora seriam outras.

Anísio vive o público e privado, assim que faz o sentido, as partições da vida são claras, as placas, os sinais, as distinções são nítidas, tudo vai bem. Dentro e fora, a intimidade do lar e o mundo lá fora, o trabalho e a sociedade lá na rua, a família aqui dentro de casa. Tudo muito bem, ok.

Thati diluiu tudo em uma coisa somente, vive como é em qualquer rincão, sua família se estende da sala para os confins de sites remotos na França, com ramificações para a Índia e o Japão. Dorme com o computador ligado e houve um site que publicou suas fotos trocando carícias com a namorada. Ela achou o máximo, gostou muito. Foi por isso que passou a dormir com o computador ligado. Thati escreve poesia acompanhada de um grupo de aproximadamente 35 pessoas; as poesias devem ser feitas na hora, on line. Ela pensa em noivar com o homem casado pela Internet. Mas não vai se casar com ele. Ela vai se casar é com a menina, porém primeiro pensam em adotar uma criança africana. Thati acredita que o mundo é muito bonito, divertido, é muito bom viver, e tudo isso em 90% das questões. Ela reconhece que existem coisas tristes, mas é uma questão de escolha evitar os 10% “que arrasam com a gente” – diz ela.

Estamos em 2010. Em meu consultório acompanho Anísios e Thatis. Eles são bem cartesianos no reconhecimento de suas demandas e necessidades e buscas, mas nunca vi dois Anísios gêmeos, nunca vi duas Thatis gêmeas. Por mais iguais que se mostrem, são sempre imensamente diferentes em suas especificidades.

Mas existem os “Anitis”. Os Anitis são mesclas de Anísios e Thatis, ora mais para um lado, ora mais para o outro. Os Anitis trazem muitas questões existenciais para o consultório que são típicas de um Anísio que se assustou com uma questão banal se fosse vivenciada por uma Thati; trazem questões típicas de uma Thati que se assustou com um assunto pueril se fosse vivenciado por um Anísio.

Imagino que você, ao ler o que escrevo, pode estar pensando quantas questões existenciais em sua vida hoje não dizem respeito exatamente ao que estamos tratando. Quer ver concretamente algumas destas questões? Elas são muitas. Exemplos: você está no segundo casamento e sua mulher, que também vem de um casamento que acabou, não lida bem com seu filho adolescente que mora com vocês; não existe mais estabilidade em seu trabalho e a qualquer momento um garoto de 19 anos pode tomar o seu lugar no departamento de criação da empresa; na sua idade, seu pai já era um velho aposentado, e você não sabia que aos 50 anos seria assim tão jovem; você sempre acreditou que uma pessoa deve ter uma religião, seja o cristianismo, o marxismo, o budismo, e agora se surpreende por ser ateu; antigamente, e isso foi há pouco tempo, você tinhas respostas exatas, sabia dizer sim e não com convicção, raramente titubeava entre o certo e o errado, e agora tem constatado contradições que não sabe explicar; sobre as contradições, você reconhece que aparentemente evoluiu ou atrasou a ponto de não se importar mais com isso, o que não impede você de se meter em conflitos e encrencas por conta desta situação. São dezenas e dezenas de questões semelhantes a esta que os Anitis têm trazido ao consultório.

Estas questões que se anunciam são características de um neohumanismo. Estamos de passagem. Mas há diferenciais. Há séculos, há décadas, os períodos entre as passagens demoravam. Temos como referencias próximas, a década de 50, geração Beat, a década de 60, geração jeans feito de lona etc. E havia nitidamente a passagem entre uma e outra. Agora, não. Parece que entramos em um neohumanismo e que as passagens agora serão permanentes, muitas vezes indistintas, sobrepostas, vertiginosas, breves, para sempre. Para sempre? Vamos trabalhar nos consultórios agora para saber identificar, compreender, lidar com isso. Muito trabalho.

 

 

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