Instituto Packter
Filosofia Clínica
Elementos gerais da Filosofia Clínica.
Instituto de Filosofia Clínica de Campinas e Região
Instituto Mineiro de Filosofia Clínica
A insanidade da mente contemporânea
Lúcio Packter
Jair
buzina para o carro logo à frente de seu Ford, pois a sinaleira abriu; mas Jair
se irrita quando alguém, na próxima sinaleira, buzina para ele pelo mesmíssimo
motivo pelo qual ele acionou a buzina um quarteirão atrás. Jair fica irritado
por esperar na fila do supermercado até que a velhinha encontre uns trocados na
bolsa diante do caixa; mas Jair acha injusto que se animem contra ele, minutos
depois, por não encontrar as moedas exatas na carteira – fazendo ele com que a
fila demore...
Jair costuma dar umas olhadelas, uma sobrancelha arqueada para a pompa, quando a
moça bonita passa com a saia curta; mas Jair considera traição que sua esposa
suspire para o carteiro bonitão que aparece toda quarta-feira na soleira de sua
porta trazendo documentos.
Jair critica o governo, critica parte das pessoas com as quais convive, por
falta de pontualidade, por não cumprimento de promessas, por negligências, acha
isso um absurdo; mas não sentencia como absurdo sua falta de pontualidade, suas
hipocrisias, seus esquecimentos. Jair, se consultado, tem justificativas
razoáveis para tudo o que foi citado acima, explicações que lhe absolvem, mas
não percebe que os outros poderiam utilizar os mesmos argumentos de apologia
empregados por ele.
Nada se resolve de fato nesta caminhada de Jair, neste quesito, e isso é parte
da questão, parte da “loucura” que Jair justifica como “normal no mundo corrido
de hoje”. Parte da normalidade “louca” de nossa época parece consistir em
presumir o outro, ao invés de promover a alteridade.
Estes dias, durante um voo, eu lia uma revista inglesa. O jornalista questionava
o uso do niqab, o véu integral, por uma mulher inglesa em Londres, mulher
convertida ao Islã. Pense um segundo sobre isso: uma mulher inglesa usando
aquele véu que deixa apenas os olhos para o mundo, na Inglaterra. Mas não
imagine isso como faria Jair. Leia o argumento desta mulher, um antídoto a
“Jaires” de todos os rincões:
“This is a free country.
Why is everybody so obsessed with the niqab while no one says anything about the
women walking around half-naked?”
Jair, em sua miopia existencial, não percebe que o argumento desta mulher
poderia ajudar sua visão para a compreensão da alma humana, um pouco mais do que
é no momento, ao menos. Ele não a ouve, supõe que por usar de pejorativos para
com ela isso signifique conversação... e, infelizmente, em parte é. Jair não é
“louco”, porém Jair aponta perfeitamente quem o é. Exemplo: quem discordar dele
de maneira que não pareça razoável a Jair, corre o risco de ser apontado como
desgarrado da sanidade.
Jair tem plena convicção de que o mundo seria melhor se seguisse o que ele
considera o certo, o adequado. Para Jair, o mundo é “louco”. Muitas pessoas
assim saudáveis como Jair consideram o mundo um ser doentio.
Camel anseia por férias, solicita em requerimento que possam antecipar; quando,
por fim, obtém suas férias antecipadas, vai para a praia e fica a jogar cartas:
“para matar o tempo”. Assim, o tempo passa rápido em suas férias e logo ele
estará novamente no enfadonho trabalho; poderá iniciar então novas
reivindicações por férias. Eterna insatisfação.
Camel fica confuso com este tipo de “loucura”. Um dos modos pelos quais isso
ocorre é quando uma pessoa não associa atos em sequencia, dissocia os elementos.
Isso faz com que pareçam razoáveis. Este é um padrão muito antigo. Vamos a um
exemplo.
Epimenides provavelmente nasceu em Cnossos, ilha de Creta. Muito do que se conta
sobre ele notoriamente não aconteceu, mas as histórias são interessantes ainda
hoje.
Epimenides afirmou que os de Creta mentiam, todos eles. Bem, como ele era de
Cnossos, Creta, então ele também mentia, segundo suas próprias palavras. Mas, em
tal caso, a afirmação dele seria verdadeira, ou não? Ou seja, ele disse que
todos os cretenses mentiam; ele era cretense, também mentia; estaria mentindo ou
nos dizendo uma verdade...? Em quaisquer dos casos, estamos com problemas aqui.
Muitos casos de “loucura” de gente “normal” dizem respeito a elementos de
desentendimentos, incompreensões, coisas que a linguagem aceita e que estão
dissociadas da vida. Exemplo: “vou te dar a ordem de não aceitares ordem
nenhuma”. Ora, e esta ordem que foi passada deve ser aceita?!
Uma
das mais contundentes “loucuras” de gentes “normais” dos nossos dias está
relacionada aos códigos de alienação. Muitos pesquisadores da alma humana
escreveram sobre o assunto. Reich explanou o tema: “...não existe nada a que
mais fujas do que a encarar-te a ti próprio. Estás doente, Zé Ninguém, muito
doente, embora a culpa não seja tua. Mas é a ti que cabe libertares-te da tua
doença. Já há muito que terias derrubado os teus verdadeiros opressores se não
tolerasses a opressão e não a apoiasses tu próprio”. Erich Fromm escreveu: “As
pessoas são transformadas em coisas; suas relações umas com as outras assumem o
caráter de propriedade. Mas a questão essencial não é tanto o que seja o
conteúdo do eu, senão que o eu seja sentido como uma coisa que cada um possui, e
que essa “coisa” seja a base de nosso sentido de identidade”.
Aqueles que se consideram “normais”, que entendem ser adequados ao mundo o
suficiente para poderem dizer quem é “louco” e quem não é, isso a partir do
entendimento do que possuem sobre saúde mental, logo eles (!), não percebem que
é um sintoma da insanidade que condenam o estudo que fazem, a identificação e o
tratamento da “loucura” daqueles a quem consideram insanos. Parte da alienação
de si mesmos.
“A pessoa alienada não tem contato consigo mesma, e também não o tem com nenhuma
outra pessoa. Percebe a si e aos demais como são percebidas as coisas: com os
sentidos e com o senso comum, mas, ao mesmo tempo, sem relacionar-se
produtivamente consigo mesma e com o mundo exterior.” – comentou Fromm.
Pede
paz e fabrica armas de guerra. Pede amor e oferece desconfiança, medo. Fala em
liberdade e constrói prisões. Prega a fraternidade e usa de fofoca e intrigas.
Afirma a saúde enquanto ergue usinas para adoecer pessoas. Procura a calma
correndo; busca a alegria chorando; chama a vida morrendo. Este que assim
procede foi quem instituiu o que se denomina de “loucura”? E o fez para si
mesmo? Não, fez para os outros... sintomaticamente. E foi assim que caiu preso
na própria gaiola. No âmbito pessoal, individual, aproximadamente: pede a
compreensão e oferece a crítica severa; busca amor mas confunde com sedução;
clama por confiança e desconfia; institui a amizade e trai; em nome da verdade,
mente. Sua “loucura” é maior do que aqueles aos quais denomina de “loucos”, mas
é parte de sua “loucura” não saber disso.
Não compreendendo que as impressões dolorosas e desencontradas que vivem se
desencadeiam a partir de compreensões tortas, muitos olham para o outro na forma
de espelho. Alguns filósofos identificaram este fenômeno e procuraram explicar
parte de suas raízes.
Hannah Arendt, ao tratar da condição humana, escreveu: “Os homens sempre
souberam que aquele que age nunca
sabe exatamente o que está fazendo; que sempre vem a ser
‘culpado’ de consequências que jamais desejou ou previu;
que, por mais desastrosas e imprevistas que sejam as
consequências do seu ato, jamais poderá desfazê-lo; que o
processo por ele iniciado jamais termina inequivocamente
num único ato ou evento, e que seu verdadeiro significado
jamais se revela ao ator, mas somente à visão retrospectiva
do historiador, que não participa da ação. Tudo isto é motivo
suficiente para que o homem se afaste, desesperado, da esfera
dos negócios humanos e veja com desdém a capacidade
humana de liberdade que, criando uma teia de relações entre
os homens, parece enredar de tal modo o seu criador que este
lembra mais uma vítima ou paciente que o autor e agente do
que fez”.
Joey
está muito "doente", segundo os próprios padrões que ele utiliza para designar
quando alguém está seriamente enfermo. Levanta cedo, geralmente ansioso,
receoso, sabendo que precisa se colocar em movimento. Chove, e ele lamenta; como
lamenta, por outros motivos, quando faz sol. Sempre há um problema fustigando a
mente de Joey, com pausas de alívio, as quais ele compreende como efêmera paz.
Nunca está bem, bom, nada ou ninguém.
Joey está insatisfeito com o que faz, suas relações, seu trabalho; usualmente
algo o anima, mas logo fica desajeitado, temeroso.
Joey tem pressa para fazer as coisas, mas não entende o motivo. Não gosta de
esperar. Magoa-se facilmente, mas dificilmente entende porque as pessoas se
ferem tão fácil. Violento e temperamental, Joey afirma que apenas usa isso como
defesa, que é um ser pacífico... não percebe sua contradição. Joey quer mais...
quer mais dinheiro, mais amor, mais sexo, mais tempo, mais compreensão, ainda
que desperdice o pouco que possui de tais elementos, ainda que se tivesse o que
deseja provavelmente colocaria tudo a perder. Joey ouviu uma música, de Jackson
Browne, chamada Running On Empty. Joey ficou muito triste. A música diz: "Em
1965 eu tinha 17 anos e corria pela estrada; não sei bem para onde eu corro
agora, apenas continuo correndo...". Joey em breve vai aposentar. Conta que
realizará então as coisas que não conseguiu fazer porque esteve trabalhando a
vida inteira. Mas Joey não tem mais sonhos, está muito cansado, diabético,
hipertenso. As coisas perderam o sentido há muito tempo.
Joey esqueceu as perguntas, as respostas. Mas serve de alento que agora falta
pouco. Em breve tudo terminará, não é, Joey?
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