Estado de Minas

LONGE DO DIVÃ

por Déa Januzzi

Os divãs dos psicanalistas estão sendo substituídos por praças públicas, parques e jardins. A filosofia, que antes atraía a intelectualidade, agora ganha espaço em cafés e shoppings e passa a ser usada para curar as angústias da humanidade, papel antes reservado à psicanálise.

(matéria do Caderno Bem Viver)

21 de maio de 2006, domingo

 

   FILOSOFIA CLÍNICA PARTE DE SITUAÇÕES CORRIQUEIRAS PARA REPENSAR A EXISTÊNCIA HUMANA, SUBSTITUINDO CONSULTÓRIOS POR BANCOS DE PRAÇAS, À LUZ DA SABEDORIA DE PLATÃO, ARISTÓTELES E SÓCRATES.

  

            Platão, Sócrates, Aristóteles, Nietzsche e Shopenhauer, no lugar de Freud e seus discípulos. Praças públicas, jardins e parques, no lugar do divã. A filosofia sai das prateleiras e do circuito intelectual para ganhar espaço nos cafés e shoppings, além de entrar para a lista dos livros mais vendidos pelas editoras. Com diversos nomes, como filosofia clínica, aconselhamento filosófico ou filosofia prática, conquistou adeptos. No Brasil, já são mais de 4 mil filósofos formados – ou em formação - , que podem exercer a clínica, na tentativa de curar as feridas da alma, antes só permitida à psicanálise.

            Com duração mais curta e sem indicação de remédios ou bulas, a filosofia surge como alternativa à psicoterapia tradicional. “O próprio momento existencial da humanidade favorece o desconforto quanto ao futuro. As pessoas se vêem às voltas com situações de conflito, medo e angústia”, explica Sebastião Soares, de 56 anos, filósofo formado pela UFMG e com pós-graduação em filosofia clínica.

            Em Belo Horizonte, ele atua há 10 anos na clínica, mas tudo começou como trabalho de recursos humanos, área em que também é doutor. “Nos sindicatos, ONGs e entidades em que atuava, as pessoas se queixavam dos tratamentos tradicionais. Havia uma certa desconfiança de métodos que aprovam como única saída um frasco de antidepressivos, mas todos continuavam infelizes”, afirma.

            Foi Lou Marinoff, filósofo canadense, quem divulgou os efeitos terapêuticos de Platão. Autor do best-seller Mais Platão, menos Prozac, lançado no Brasil pela Editora Record, ele desvenda uma nova corrente de pensamento e retira a filosofia do seu castelo acadêmico, para coloca-la na rotina das pessoas. No aconselhamento filosófico que Marinoff propõe, Platão, Aristóteles, Kant e Kierkegaard, entre outros, são pontos de partida para repensar situações corriqueiras, como conflitos amorosos, depressão, mudanças profissionais e o medo da morte.

            Professor da Citty College de Nova York, Marinoff criou o aconselhamento filosófico para ajudar pessoas a lidar com suas angústias. No Brasil, o gaúcho Lúcio Packter, de 43 anos, é o idealizador da filosofia clínica. Psiquiatra na década de 80, ele fechou o consultório, pôs a mochila nas costas e foi morar, por 10 anos, em Edimburgo, na Escócia. Não estava satisfeito com os rumos da psiquiatria ortodoxa.

            Lúcio percorreu a Europa e os Estados Unidos, para encontrar na filosofia sua fonte de inspiração. Ao retornar ao Brasil, já com o arcabouço da filosofia clínica pronto, mostrou que existe um outro caminho possível para a saúde mental, com a criação, em 1995, do Instituto Packter, em Porto Alegre (RS), um centro de pós-graduação reconhecido pelo Ministério da Educação. 

 

Matéria de Capa (p 4 e 5)

TERAPIA AO AR LIVRE

Por Déa Januzzi

 

Adeptos da Filosofia Clínica ressaltam que respostas para as angústias estão na própria história de vida de cada um

 

·        “Não é uma receita de bolo. As respostas estão na própria história de vida da gente” Roberta Cândido, 24 anos.

 

            Refugiados das terapias tradicionais, os pacientes – ou partilhantes, como preferem ser chamados – se deliciam com as sessões quase sempre ao ar livre, a exemplo de Sócrates, que praticava a filosofia no mercado, aceitando todos que apareciam e estavam dispostos a discutir. Roberta Cândido, de 24 anos, funcionária do Núcleo de Cidadania da Regional Nordeste, fez suas seções de filosofia nas lojas de artigos artesanais e lanchonetes de São João del-Rei, sob a supervisão de Marta Claus, sua terapeuta. “A gente sempre saía do consultório, pois o meu maior problema era de relacionamento com as pessoas. Eu não tinha nenhum limite e era completamente dependente das pessoas”, diz.

            Entre as leituras do filósofo e romancista francês Jean-Paul Sartre, filmes como Colcha de Retalhos, de Jocelyn Moorhouse, e passeios pelos lugares de que gostava, Roberta foi mudando os rumos de sua vida. Formada em filosofia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), ela voltou para Belo Horizonte e até seus pais se surpreenderam com a nova Roberta. “Depois de oito meses de terapia filosófica, aprendi a me relacionar com o outro. Estou mais tranqüila e recomendo para qualquer pessoa. É um caminho novo e saudável, porque não existe nada pronto. Não é uma receita de bolo. As respostas estão na própria história de vida da gente.”

            Ela conheceu a terapeuta Marta Claus na UFSJ, onde fazia graduação em filosofia. “Fiquei sabendo da filosofia clínica e, em seguida, tive a indicação de um amigo para procurar a Marta. Foi tão bom que eu não queria receber alta”, confessa a partilhante ou a que compartilha com o outro a sabedoria dos filósofos Epicuro, Sócrates, Aristóteles, Schopenhauer, Locke, Hume, Nietzsche, Kant, Spinoza, Merleau-Ponty, Gadamer, Husserl, Foucault, entre outros.

            A filosofia clínica é, segundo Sebastião Soares, “um processo terapêutico voltado para desconstruir os choques existenciais manifestados pelos partilhantes que nos procuram”. Tudo começa pela colheita categorial. “O filósofo terapeuta procura conhecer a história de vida da pessoa. A priori, não posso dizer nada a ela. Não tenho nenhum preconceito à respeito do que a pessoa traz para mim. É necessário recompor todo o itinerário existencial, desde a lembrança mais remota até o momento atual. Só depois de obter a história é que o terapeuta começa a formular uma proposta de trabalho, com a montagem de uma estrutura de pensamento (EP), pela qual terá acesso à essência da pessoa, com valores, projetos, amores, frustrações e assim por diante”, explica Sebastião.

            A terceira fase é mais dinâmica, um momento interativo entre duas pessoas. “Vamos tentar encontrar opções, desconstruir os choques da estrutura de pensamento, a partir do diálogo ou da esteticidade, passeando pelo parque ou dialogando em consultório, na linha da maiêutica de Sócrates. São estimuladas as respostas e as opções terapêuticas que surgem da interseção entre filósofo clínico e o mundo existencial da pessoa”.

            EM CONFLITO Pensar não é tão maçante assim. Pode ser uma aventura emocionante, sem cair na tentação dos discursos prontos e fáceis. Sebastião dá como exemplo uma pessoa que está em conflito, depois de 20 anos de profissão. “Não sabe se continua no mesmo trabalho, se arranja um outro ou se muda para o Tibete. Entre os 32 tópicos da estrutura do pensamento, temos um que diz “O que acha de si mesmo?.” “Se a pessoa quer largar tudo e ir para o Tibete, mas não gosta do clima frio, está instalado o conflito. Não será melhor ela pensar o quanto já ganhou com essa profissão?

            O processo maiêutico de Sócrates permite à pessoa indagar-se e descobrir algumas questões de conflito em sua vida. Desfazer os emaranhados existenciais e encontrar novas motivações para viver.” Entre os partilhantes desses 10 anos de prática filosófica, Sebastião já atendeu crianças, adolescentes e adultos com problemas de perdas, tendência suicida, depressão e obesidade mórbida, entre outros.

  

                                           HISTÓRIA DO PACIENTE CONTADA EM DETALHES

 

            Quem duvida da eficácia da filosofia clínica deve conhecer o gaúcho Hélio Strassburger, de 45 anos, que mora em Juiz de Fora, na Zona da Mata, há três meses. Em sua prática como filósofo clínico, ele trabalha com portadores de sofrimento mental na Casa de Saúde Esperança. Com uma equipe multidisciplinar de médicos, artistas plásticos e assistentes sociais, Hélio faz parte da terceira turma de especialização em filosofia clínica do Instituto Packter, mas confessa que a formação é continuada, não pára nunca. “É um momento de auto conhecimento, de análise interna.”

            Ele se apressa em explicar que a filosofia clínica não classifica tipos de doença nem indica medicamentos. “Desmistifica essa coisa de saúde e doença.” Diferentemente de anamnese médica – conjunto de perguntas que levam ao diagnóstico de uma patologia -, na terapia filosófica a história do paciente é contada com requinte de detalhes para valorizar a singularidade do sujeito.”

            Uma sessão de filosofia clínica pode custar de R$ 40 a R$ 200, mas, em contrapartida, exige que o profissional seja graduado em uma faculdade reconhecida pelo MEC. Ele tem que cursar filosofia clínica em centros autorizados, passando por pré-estágio e estágio supervisionado, obtendo o certificado A (especialização em filosofia clínica). O curso tem duração de dois anos, com 18 meses de aulas teóricas e seis meses de estágio. Só depois o terapeuta pode partilhar, filosoficamente, com outras pessoas.

            Em Poços de Caldas, no Sul de Minas, a 490 quilômetros da capital, o Centro de Filosofia Clínica, coordenado por Izabel Cristina, de 48 anos, funciona desde 2002. “ O que diferencia a filosofia clínica das outras psicoterapias é o respeito pela dor do outro. Sabemos ouvir, até poder interagir. Trabalhamos basicamente com a estrutura de pensamento, pois não existe apenas uma corrente filosófica. São vários filósofos que tentam responder ás inquietações da humanidade”, explica Izabel.

            Outra que se apaixonou pela filosofia clínica foi Sylvia Regina Yamaguchi, de 50 anos. Professora de filosofia e de ensino religioso numa escola de ensino médio da rede estadual de Juiz de Fora, ela elogia a nova forma de terapia, que deixa a pessoa falar, sem ficar analisando sua linguagem. “É um novo modo de enxergar o mundo e respeitar as pessoas do jeito que elas são.”

            Lúcio Packter resume. “Filosofia é a mãe de todas as formas de conhecimento. Se houver conflito com outras áreas do saber, então será uma briga em família, o que não é bom para ninguém.” Autor de livros como Filosofia Clínica, da editora Guarapuvu, e Ana e o Dr. Finkelstein, da Wak Editora, ele afirma que a aceitação é surpreendente. “Até meus professores de faculdade viraram meus alunos.” Há três anos, o Instituto Packter se abriu também para não-filósofos. “São médicos, psicanalistas e psicólogos, que estão interessados na terapia filosófica, uma nova ferramenta para antigas inquietações humanas.”